segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A receita dos sonhos

À padaria, escutou o pedido, quase uma súplica de um menino mais velho, com imaginados oito anos:
- Um sonho, por favor.
E tão prontamente, segundos depois, lá estava um saco de papel contendo o pedido. Assustado, confuso, achou que fosse a solução para as noites que passara sem sonhar, já havia perguntado à sua mãe o motivo de sua mórbidas e escuras noites sem imagens (não com essas palavras, é claro), mas ali estava o sonho!
- Sonh... quanto custa o sonho?
- Um real, meu bem
Assustado, comprou com seu dinheiro, havia dinheiro, o que guardara do lanche do intervalo do dia anterior. Comprou dois sonhos.
- Dois.
- Quais os sabores?
- Sabor?
- Sim.
- Os melhores, por favor.
Rindo, a vendedora entrara em alguma passagem pela cortina de chita da padaria de bairro e trouxera, em dois saquinhos de papel, dois sonhos, os melhores.

Apesar da curiosidade, não abrira as embalagens ali, os levou para casa, e após escutar sem escutar as reclamações maternas de ter esquecido os quatro carioquinhas e dois sovados, entrara em seu quarto sem sem importar que sua mãe mesmo iria, e que ele ficaria sem sobremesa, mas não importa, ali, escondidos na mochila, haviam dois sonhos.

Enfim, trancou-se, fechou parte das cortinas, deixando passar pouca luz, e, no pequeno ritual, pegou avulsamente um dos sacos com cuidadosa curiosidade, o abriu sem olhar, colocou uma mão dentro e apalpou o sonho arredondado. Aos poucos sentiu a textura pastosa de seu centro, e, ainda de olhos fechados, o cheirou.
- O sonho parece de comer.
Sem pensar ou olhar, como um bicho, o mordeu e gostou. Em instantânea crescente curiosidade do sabor por completo, abocanhou em menos de um minuto seu primeiro sonho, lambeu os dedos e deitou ali mesmo de barriga pra cima. Ficou a ver imagens com os olhos fechados, a sentir o sabor do sonho, a sonhar. Já não sabia mais se estava dormindo ou acordado, mas sonhava com o açúcar na boca.
Não pôde se conter e viu o segundo sonho na sua sobremesa secreta após o jantar. Ele era lindo e, sim, de comer, indiscutivelmente havia açúcar ali.

- Existem sonhos maus aqui?
Perguntou no dia seguinte à vendedora da padaria, essa, adorando a interação com o magro menino de olhos negros e vivos, respondeu:
- Não, só trabalhamos com sonhos lindos!
E assim passaram os dias, alguns com ápices de quatro sonhos, quando a mãe, que não tinha tempo para fazer seu lanche, dava quatro reais e recomendações à professora que só o deixasse comprar coisas saudáveis. "Sim", eram os resumos do magistério, esquecimentos eram as respostas do atarefamento com as outras crianças.

Ele estava enchendo-se de sonhos e ficando cada dia mais distante de seus poucos anos, não na cronologia, mas nos seus silêncios compartilhados das faltas maternas. O sonho recompensava o abraço que faltava, dois ou três sonhos recompensavam um beijo, e assim ele ia mantendo-se feliz e preenchido de motivos.
Ele estava enchendo-se de sonhos e ficando cada dia maior, mas sua mãe não percebia. Ele estava enchendo-se de sonhos e ficando cada dia mais tonto de tanta felicidade, até o dia que ele ficou tão feliz e tonteante que caiu, comera onze sonhos em trinta minutos com o dinheiro que conseguira do pote na cozinha que sua mãe guardava os trocos, comera e sorrindo caiu enquanto sua glicose subiu. Sozinho em casa, o menino ria, gargalhava, enquanto repetia:
- De quê esses sonhos são feitos? De quê esses sonhos são feitos? De quê além do açúcar?

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